Até Quando Ter Esperança?
Conto de Inverno
Conte d’hiver (1992)
Eric Rohmer
Até que ponto se pode viver na recordação de um grande amor que, por obra do acaso, acabou ficando para trás? Move on, dizem os americanos. Deixe o passado para trás e siga em frente. No Brasil usamos o “o que passou, passou” e outras pérolas da sabedoria popular. O importante é voltar nossas ações para o futuro e não se deixar prender por acontecimentos antigos. Ou não? Será possível viver um amor que, apesar de ter sido interrompido, ainda se encontra assustadoramente presente?
Esse é o ponto de partida de Conto de Inverno, de Éric Rohmer, parte de um conjunto que ele chamou de Contos das Quatro Estações. Félicie viveu um grande amor de verão em alguma ilha do litoral francês. Por um lapso seu, passou o endereço errado para Charles, um imigrante ilegal que partia em viagem para a América. Pior do que isso: errou o nome da cidade, tornando a possibilidade dele encontrá-la um verdadeiro milagre.
Cinco anos depois, reencontramos Félicie dividida entre Loïc e Maxence. E agora com uma filha de Charles, Elise. No entanto, a lembrança do primeiro amor ainda não se dissipou, e ela vive o dilema entre o passado e o futuro. É assim que ela deixa Loïc, um intelectual, por Maxence, seu chefe em um salão de beleza. Todos esses acontecimentos vamos descobrindo como descobriríamos na vida real: através de conversas. São os diálogos que nos revelam o que aconteceu em sua vida e as reflexões que ela faz sobre esses eventos. É quase uma reprodução do método socrático — ela vai se conhecendo ao fazer perguntas a si mesma e ao interagir com os outros.
Mas são dois momentos íntimos que trazem as respostas de que ela precisa. No primeiro, depois de mudar-se para Nevers com Maxence, ela entra por acaso numa catedral, acompanhando a filha. Enquanto a menina contempla um presépio, Félicie senta-se e reza. Na verdade, mais do que rezar, ela conversa consigo mesma, como contaria depois a Loïc. Dizem que quem conversa consigo mesmo acaba conversando com Deus, ressaltando o papel da autoconfissão como caminho para o verdadeiro conhecimento. Félicie então decide deixar Maxence e voltar a Paris, buscando reorganizar a própria vida.
O segundo momento de iluminação ocorre ao assistir a uma peça de Shakespeare, justamente Conto de Inverno. Nela, o rei Leontes vê a esposa “ressuscitar” pelo poder da fé e da esperança. Apesar de estar ao lado de Loïc, esse é um novo momento íntimo, pois ambos assistiram à mesma peça com olhares diferentes. Ele vê, pelos olhos frios de um intelectual, uma releitura do mito da ressurreição ; quase como se fosse um folclore. Ela vê, com o coração, o poder da fé. Loïc é católico praticante, enquanto Félicie está, como ela mesma diz, “brigada com Deus”. Mas percebe-se nela uma fé autêntica e não nele, que chega a duvidar dos milagres, uma das bases do cristianismo. Rohmer sugere que a verdadeira religiosidade não está na exteriorização da fé, mas na incorporação dela no cotidiano.
Ela decide, por fim, viver sozinha. Confessa a Loïc que ainda nutre a esperança remota de reencontrar Charles, mesmo que ele esteja casado ou não a ame mais. Ainda assim, viver com essa esperança lhe parece melhor do que qualquer outra certeza, pois o prêmio seria inimaginável. Loïc lembra que essa é, no fundo, a aposta de Pascal: é melhor viver acreditando na imortalidade da alma, pois, se for verdade, o ganho é infinito — e se for ilusão, ainda assim terá sido uma boa vida. Em outro momento, Félicie comenta que ele só acredita no que lê nos livros; uma crítica ao excesso de intelectualização, que pode afastar alguém da vida real.
E foi assim que Félicie deixou Loïc por Maxence, depois Maxence por Loïc — e, finalmente, Loïc por Charles, mesmo que apenas pela presença de sua memória. A crença no milagre de reencontrá-lo depois de tanto tempo é suficiente para lhe dar direção. E Rohmer, é claro, escolheu contar essa história justamente na época do Natal...
Nunca conheci um cineasta que conseguisse retratar a beleza da mulher com tanta delicadeza. Sim, Rohmer escolhe atrizes bonitas, como muitos outros fazem. Mas sua diferença está na personalidade que imprime a elas. Nos apaixonamos por cada uma de suas heroínas, não apenas por como são, mas por quem são. Ele alia beleza física a gestos, olhares e espírito. Isso as transforma em mulheres de uma beleza rica e sutil. Coisa de gênio.
Mais uma vez, Rohmer centra seu filme nas pessoas e na realidade. Alguns críticos dizem que seus filmes são lentos demais para o cinema. Pode ser. Mas são no ritmo da vida real. E isso nos dá tempo de pensar junto com os personagens, de refletir sobre nossas próprias escolhas. Seus personagens são extraordinariamente reais, assim como suas histórias. A gente cruza com elas o tempo todo. Com Rohmer, aprendemos a olhar de verdade para essas as pessoas e suas experiências.
Eric Rohmer nos ensina a ver.