A Espada Era a Lei
Em 1995, eu era um Aspirante, servindo em Santarém, no Pará, junto com o Rubbioli. Desde o início nos apresentamos como voluntários para fazer o curso de guerra na selva, o CIGS. Chegamos a treinar na piscina de um clube da cidade, pois sabíamos que muitos terminavam reprovados nos testes de natação. Havia uma recomendação do Comando Militar da Amazônia e o do Norte para que todos os aspirantes fossem inscritos no curso e estávamos confiantes que estaríamos em Manaus no meio do ano para buscar a brevê de onça.
Não quis o destino. O nosso Comandante tinha outras prioridades e justificou ao Comando do Grupamento de Engenharia, nosso escalão superior, que devido aos trabalhos do Batalhão não poderia abrir mão de 3 oficiais, já que um colega da turma anterior também tinha pedido para fazer o curso. Acabou que ele foi designado e nós ficamos.
Alguns meses depois minha namorada me ligou de Manaus. O pai dela era Coronel e chefiava o Centro de Informática.
__ Ainda bem que você não está no curso! Aconteceu alguma coisa lá e já morreu um; parece que tem outros internados. Não sabemos muita coisa mas parece ser alguma coisa tipo ebola.
Na época tinha acontecido a epidemia de ebola na África, por isso a referência. Também foi quando lançaram o filme Epidemia, que fez sucesso nos cinemas, também com tema de um virus desconhecido matando um monte de gente. Realmente houve um óbito, um colega da turma anterior, O Silva, e logo haveriam mais dois em situação crítica, que foram isolados no hospital. Um deles, o Marcos Vinícius, me contaria tempos depois.
__ Você não tem ideia. Os médicos só entravam na sala vestidos como se fossem astronautas, como no filme. Meus pais não podiam me visitar. Fiquei semanas assim. Tiravam amostras do meu sangue de tempos em tempos, mandavam para os Estados Unidos. Ainda não sei exatamente o que foi. Disseram que foi uma mutação de algum virus.
Hoje com covid e tudo, parece bem semelhante ao início da pandemia, mas lá em 1995 parecia mesmo coisa de cinema. O Vivi se recuperou e se tornou piloto do Exército, fazendo sua carreira na aviação. O outro colega, da turma de 1992, também se recuperou e se tornou forças especiais, mesmo com apenas um pulmão. Infelizmente faleceu em acidente de paraquedas há alguns anos.
Outro dia encontrei o Cunha, que estava no mesmo curso, que comentou mais sobre o acontecimento. Na época ele servia com o Silva, em São Gabriel da Cachoeira.
__ Nós éramos vizinhos de armário no quartel. Inclusive eu estava com problema de espaço e o Silva ofereceu o armário dele para eu guardar algumas coisas, já que ele estava mais estabelecido na cidade e não usava tanto. Foi assim que deixei minha espada de oficial no armário dele.
Em 1994, quando nos formamos, a situação salarial era bem pior para o Cadete do que nos dias de hoje. Tudo era muito difícil, inclusive comprar a espada. O Alexandre, 080, tinha um contato em São Paulo que fabricava espadas para o CPOR, com um preço menor que nos vendiam na AMAN. Foi assim que o Cunha comprou a dele, com muito sacrifício na época.
Retomando, continuou o Cunha:
__ O Silva era meu canga1 no curso; fazíamos tudo juntos. Até hoje não sabemos o que realmente aconteceu. A desconfiança é da paca que abatemos. Estávamos na sobrevivência, na mesma patrulha quando nos deparamos com uma paca. Ela ficou estática, nos encarando, sem tentar fugir. Alguém fez o sinal de parada e também ficamos estáticos. O Silva estava com a arma de caça. Fizemos o sinal e ele avançou. Abateu a paca. De todos, ele foi que teve mais contato porque foi quem depois a abriu e eviscerou. Teve contato com o sangue. Comemos a paca e tudo continuou normal. Alguns dias depois, ele começou a passar mal.
__ Então levou um tempo?
__ Sim, não foi na hora. Na semana seguinte fizemos uma orientação. A patrulha que não conseguisse completar ficaria um tempo a mais. Quem conseguisse já estaria liberado na sexta para o fim de semana. A minha conseguiu; a do Silva, não. Lembro que estava com o carro do Steffen, que servia em Manaus. Como sabia que o Silva voltaria no sábado, fui buscá-lo no dia seguinte. Ele estava bem mal. Ao lado dele tinha uma pizza grande, com uma única fatia comida. Ele tentou se alimentar e não conseguiu. No domingo ele tinha piorado ainda mais e o levamos para a enfermaria. Ele foi transferido imediatamente. No dia seguinte, estávamos avançando para o rancho quando o coordenador do curso nos reuniu para dar uma notícia triste, o Silva tinha falecido. A partir daí ficou um medo velado. Todo mundo que tinha algum problema de saúde tinha que passar por exames, todo mundo ficou preocupado. Logo depois foi o Berckencamp; depois o Vivi. A coisa bateu para mim quando um dia o instrutor avisou para todo mundo ficar junto com o seu canga para a próxima instrução. Eu olhei para o lado, não tinha mais canga. Ele tinha morrido. Nessa hora tive vontade de sair, mas dei um jeito de ir até o final e concluí o curso.
__ E a espada? Conta da espada __ disse o 080, que também estava na conversa.
__ Pois então __ continuou o Cunha __ voltei para São Gabriel da Cacheira e descobri que tinham aberto o armário dele e feito o inventário. Na lista estava lá, uma espada de oficial, a minha espada. Acharam que era dele e já tinham enviado tudo para seu pai. Esperei entrar de férias e fui no Rio, em Marechal Hermes buscá-la. Era onde o pai dele morava. Ele me recebeu muito bem, ainda muito triste, e me conduziu para a sala. Quando vi, no meio da parede estava o que?
__ A espada? __ arrisquei.
__ Isso mesmo, a espada em uma moldura. Era um orgulho para ele. O que eu iria dizer? Como eu falo para um senhor que acabou de perder o filho que aquela espada era minha? Não disse. Conversamos, lembramos do Silva e fui embora. Foi a última vez que vi minha espada. Logo depois fui servir na AMAN. Na selva a gente não usava espada naquela época, mas na AMAN era diferente. Lembro que fui numa loja que vendia espadas e pedi uma emprestada para me virar enquanto esperava o fim do ano para encomendar uma, aproveitando a compra dos cadetes. O tempo passou e quando fui devolver, a empresa tinha meio que brigado com a loja e levado tudo embora. O dono da loja me disse que nem adiantava devolver que não tinha mais conversa com a fabricante. Assim fiquei com a espada. Perdi a minha, mas logo recuperei. Esta é a estória da espada.
Existem muitas coisas que não controlamos na vida, talvez até a maioria. O que controlamos é nossa atitude diante da providência. Cunha, num acontecimento triste, perdeu o colega e a própria espada. O destino repôs sua espada, talvez pela atitude digna que teve naquela casa em Marechal Hermes. E ficou com aquela narrativa interessante para contar.
Que o Silva, e o Berckencamp, estejam descansando em paz. Ambos se foram fazendo o que amavam, mesmo que muito cedo.
Canga é como o militar denomina seu parceiro em um curso. É normal que se estabeleçam duplas, para que um ajude o outro, inclusive incentivando a não desistir.
Ate parece que foi obtem, que li o jornal o" ESTADO DE SAO PAULO", noticiando o infortúnio do Marcos Vinicius!
Caramba 😢😢👏🏻