Mulher Nota Mil (Weird Science, 1985): a mulher perfeita?
Neste ensaio, defendi que os 6 filmes coming of age1 do John Hughes seguem uma linha coerente, com um grande tema central. Hoje vou falar do segundo destes filmes, Mulher Nota Mil. O primeiro foi Sixteen Candles.
Dos seis filmes, Weird Science(1985) é com certeza o mais fraco. O que não quer dizer que não possamos tirar boas lições. Explorando o argumento de Frankenstein, John Hughes apresenta as consequências da criação de uma mulher perfeita.
Gary e Wyatt são dois jovens nerds que sonham com garotas que nunca terão e sofrem bullying dos populares da escola. Utilizando um computador, que em 1985 é quase um instrumento mágico, eles criam a mulher perfeita, que não só é bonita e inteligente, como portadora de poderes mágicos para transformar a realidade. Desta forma, são capazes de mudar a sua realidade como se estivessem dentro de um sonho. A questão que se coloca é o que poderíamos fazer se tivéssemos liberdade para criar nosso próprio mundo?
Neste filme, Hughes trata mais diretamente da sexualidade. Sua premissa é o sexo como substituto do amor. Lisa é linda e representa tudo que o jovem adolescente quer em uma mulher. Mas nenhum dos dois jovens chega de fato a se apaixonar por ela. Faltam-lhe a personalidade e as fraquezas de alguém real, que eles vão encontrar em duas meninas da escola. Lisa na verdade funciona como impulso para a ação, removendo-os do imobilismo e dando-lhes coragem para poderem de fato se relacionar com o sexo oposto.
Na filosofia cristã, o amor ao próximo é uma extensão do amor de si mesmo. Uma pessoa que não consegue amar a si mesma não conseguirá se relacionar amorosamente com o outro. Os dois jovens desprezam a si mesmos e isso os condena ao mais puro isolamento da sociedade. No universo de Hughes, o bullying não é um tema central. Gary e Wyatt não tentam uma vingança contra aqueles que os humilhavam, ao contrário, quando dão a volta por cima se tornam, de certa forma, amigos. Querem ser aceitos. É como se o bullying fosse parte da realidade, fruto da incompreensão e da pressão social, uma espécie de teste que todo adolescente tem que superar, e o maior adversário nessa superação é a si mesmo. Por isso Lisa usa seus poderes para os fazerem ganhar autoconfiança, um passo necessário para uma vida autêntica em sociedade.
A construção que os dois fazem de Lisa segue a racionalidade e por isso funciona até certo ponto. É tudo tão perfeito e por isso mesmo, limitado. Sem espaço para o mistério, não podemos chegar muito longe; não podemos criar a realidade perfeita, nos refugiarmos nela como um sonho, pois precisamos retornar à realidade. A grande lição que Lisa ensina a eles é construir suas próprias personalidades.
Outro aspecto interessante do filme é a questão dos avós. Eles aparecem em diversos filmes de John Hughes, mas nunca num papel esperado, o dos bons velhinhos. Hughes os retrata desconectados da vida dos jovens e geralmente de forma inconveniente. Acreditam que os pais não sabem educar direitos seus filhos, e tentam impor uma moral. Terminam como Lisa os deixou, dentro de um armário, isolados e paralisados.
Neste filme aparecem também diversos símbolos. Os carros importados como símbolo do sucesso, as roupas, mas especialmente as festas, que ao invés de celebração, indicam mais uma certa melancolia, uma falta de sentido. O irmão mais velho não aparece como um conselheiro, e sim como alguém que oprime e tenta lucrar com a situação. São símbolos da condição humana que Hughes distribui ao longo do seu filme.
Gary Wallace: This isn’t my car. This isn’t my suit. Those weren’t even my friends.
Deb: Why are you telling me this?
Gary Wallace: Because I want you to like me for what I am.
Deb: Whatever you are, I like it.
Lisa é uma catalizadora. Ela ensina os dois jovens que eles possuem valores próprios, que eles mesmos precisam se convencer. Ela manipula a realidade para que eles mesmos consigam ver estes valores. Em um primeiro momento, deslumbrados, querem se exibir e quase colocam tudo a perder; mas logo mostram o que realmente são.
Preocupam-se com pais, avós e até mesmo o irmão de Wyatt. Querem se relacionar de maneira verdadeira com as meninas da escola, sem fingir o que não são. Quando tudo isso acontece, Lisa está livre para partir. Ela lhes deu não o que queriam, mas o que precisavam naquela momento.
Mais do que dizer o que é o amor, o filme de Hughes mostra o que ele não é. A mulher perfeita, produto dos nossos sonhos, não é a resposta que procuramos. Não é fugindo de nossa realidade, mas mergulhando nela, que vamos começar a colocar nossa vida em ordem.
No próximo artigo: O Clube dos Cinco.
"Coming of age" é uma expressão que se refere à transição de uma criança para um adulto. Pode ser um evento legal, ritualístico ou espiritual.